domingo, julho 24, 2016

Intervenção de António Luís Catarino em «Cidades Materiais», de António Alves Martins, a 15 de Julho. Teatro da Cerca. Coimbra

Nos catorze anos que já leva a Deriva e após inúmeras apresentações públicas (talvez de mais), esta é, sem dúvida, a que mais dificuldade tive em fazê-la. Liga-me uma amizade de dezenas de anos ao Tó Martins e projectos em comum, ideias partilhadas, outras nem por isso, grandes hiatos e ausências, pedidos de informações sobre a vida um do outro, a existência de grandes amigos presentes aqui e uma que não posso deixar de referir, o Francisco Pedroso Lima, infelizmente impedido de estar aqui presente, hoje, por motivos particulares.
Cidades Materiais impressionou-me. Nas suas várias releituras emergiam situações, diálogos, descrições a que não me pude furtar, parecendo-as viver, ou tê-las vivido de uma outra maneira e atacando-me sobremaneira nomes, vivências e fisionomias, sendo isto um direito de leitor, e nomes com os quais me identifiquei tais como William Morris pela natureza e pela ligação ao Homem, Stevenson e Lafargue pela presença límpida do ócio, Thoreau pela contemplação activa, Corto Maltese pela ambivalência de um espírito livre, Burroughs e a sua procura incessante do humano e do amor.
Para mim, esta dificuldade reside no tema incontornável que levou à edição deste livro. Cidades Materiais poderiam ter sido ao mesmo tempo imateriais, tais como as personagens que as habitam, ou talvez não, e por conhecer o autor num tempo já longínquo. Veremos. Resta-me, e não é pouco, acreditem, falar no autor e na realidade que nos cercou durante anos. Só me resta isto, recusando qualquer veleidade crítica ao livro. Se o farei aqui e ali é somente para sublinhar uma experiência vivida em comum, com outros companheiros. Aqui vai um conjunto de impressões que partilho convosco:
Primeira impressão –Antero. Em meados dos anos 80, tínhamos todos 20 e tal anos. Miúdos da Faculdade de Letras que dizíamos abominar, sob a fórmula de palavrosas parábolas coimbrãs: «faça-se luz, incendeie-se a universidade!». Não desgostávamos assim tanto da faculdade, mas a verdade é que nos foi ensinado muito mais nos cafés adjacentes à Praça da República onde o prazer de falar, de conhecer e de debater era superior a tudo. Com algumas substâncias e segmentos aditivos que o facto de já terem prescrito, e apesar de uma louvável loucura que contrastava por vezes com imprevisíveis depressões, não me fazem aqui desenvolver e muito menos pormenorizar, por irrelevante. O agir concreto apareceu com o convite para fazer parte de um colectivo editorial da Centelha, e mais tarde Fora do Texto, então e segundo palavras de Soveral Martins, estando em plena crise de criatividade. Contactei o Tó e durante alguns anos a coisa rolou editando alguns livros a que já se referiu na sua descrição biobibliográfica.
Segunda impressão – o espírito da revolta. In girum imus nocte et consumimur igni, o último filme de Debord realizado em 1978 e editado finalmente em 1981, com peripécias várias que, mais tarde, inclusive, levaram ao assassinato do editor da Champ Libre, Gerard Levobici (e não foi o único), constrói a ideia do consumo e da alienação como alfa e ómega do capitalismo em fase de mutação para a pós-modernidade. Esta frase latina atribuída a Virgílio é a descrição real do que nos levou à deriva nocturna e à necessidade imperiosa de lutar contra a alienação do público que nos olhava de soslaio. Consumimos a noite e pegávamos-lhe fogo mesmo com acendalhas já usadas por outros. Creio não me enganar que entre blusões negros e echarpes negras ou canadianas verdes militares, construímos à nossa maneira um fogo permanente que nos devorou igualmente na ânsia da revolta e na dramatização do sem sentido de uma vida quotidiana que negávamos. Recusávamos o tédio. Recusávamos a mercadoria, recusávamos qualquer valor de troca. Preferíamos a poesia e o pensamento como as únicas vertentes que não se podem domar. E o amor. Esse, sempre presente no fogo quotidiano em que geríamos a noite em chamas. As chamas, essas, devoraram-nos? É possível, mas nas regras do Potlacht primitivo, este com coincidências inquietantes com o cristianismo também ele primitivo, quem perde ganha, quem ganha, perde. A noite consumiu-nos, sim, mas com a voragem da revolta romântica.
Terceira impressão – «Numa sociedade invertida, o verdadeiro é o momento do falso». Isto foi dito em 1967 e corresponde a uma realidade já indesmentível e com contornos que o seu autor, Debord, provavelmente, não imaginaria na enorme dimensão espectacular que nos rodeia hoje. Assim, se nenhum movimento reivindicativo da arte revolucionária foi superado desde 1916 com Dada, esta tornou-se uma mera mercadoria, que vale o que vale consoante o valor das trocas. Assim, o livro do Tó adquire a faceta da verdade, num mundo realmente invertido. Porque utiliza as palavras certas nos lugares mais recônditos e os que estão mesmo juntos a nós, no prazer da viagem e da aventura e na própria visão do amor, a única realidade impossível de subverter. Talvez por isso, quase de certeza por isso, na Centelha, ainda antes de haver a internet e as redes sociais foi formada uma verdadeira rede (net) em forma de papel com todos os movimentos alternativos europeus dignos desse nome, da América e Canadá, passando por Seul e Tóquio onde então a luta antinuclear e libertária começava a fervilhar. Era a Ekomedia a que demos corpo, denunciando, partilhando experiências e informação de revolta internacionalistas e cujo símbolo era um gato preto assanhado. Nessa ocasião, editámos Os Novos Espaços de Liberdade na Europa, de Félix Guattari e de Toni Negri, preso na Itália e que hoje toma o seu rumo de vedeta antiglobalização com o nome de Antonio Negri que juntamente com Michael Hardt editou o best seller Império. O Tó Martins, enveredou por Ramos Rosa, com As Mãos de Água e as Mãos de Fogo, com os Pés Luminosos de Jorge de Sousa Braga, de Gil de Carvalho, Constantin Kavafy e Philip Larkin. O lado lunar e o lado solar da Centelha e da Fora do Texto. Adivinhem agora quem foi quem.
Quarta impressão – A Deriva
Nos anos 80, vivia-se por toda a Europa a ressaca dos anos de chumbo criados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof que proclamava em livro «vocês falam do tempo, nós não!» e pelas Brigadas Vermelhas de Renato Curccio na Itália, estas últimas teleguiadas, como se soube, pela polícia secreta. Tudo isto gerou uma impossibilidade poética, uma forma de ver a política e de destinar uma vida quotidiana não marcada pelo tédio e pelo aborrecimento, ou, se quiserem, pelas cadeias infernais do trabalho. Mas como promover isto mesmo numa sociedade alienada pelo medo, pela vingança dos anos pós-prec e pelo espartilho terrorista no Portugal mesquinho dos anos 80 e da recuperação yuppie? Foi a altura também dos anos criadores e libertadores do rock com o aparecimento de Johnny Rotten, dos Clash, de um Lou Reed já sem os Velvet Underground, do Bowie tornado pop, de Ian Curtis dos Joy Division e depois com os New Order, de Iggy Pop, de trautearmos Jim Morrison pelas ruas desertas de Coimbra e aclamando o Jazz, recuperando para nós o be-bop e o free como forma de dizermos: «Falem do tempo, falem do tempo, nada temos a ver com vocês!» Aderimos à arte contemporânea e às possibilidades do vídeo, do teatro e da performance sendo que estas foram, exceptuando alguns, poucos, casos, rapidamente recuperados. Identificávamo-nos pela música e pela deriva. A deriva consubstanciada todos os dias numa cidade que cada vez mais se tornava um labirinto de cimento corbusiano. A deriva que aqui se fala é a de Thomas de Quincey que, nas suas «Confissões de um Opiómano Inglês», tradução forçada, diga-se, afirmava haver uma rede subterrânea, marginal, na cidade de Londres, não cartografada pela polícia e pelas instituições políticas. Era terreno livre. Os dadaístas, os letristas e os surrealistas e muito mais tarde os situacionistas praticaram-na na forma de desconstrução da palavra e da deambulação livre em corredores libertários. Na construção de situações irreversíveis. Mas sem se superarem. Precisamente: o verdadeiro aqui, não superou o falso. Assim, toda a deriva que realizámos, muitas vezes sem sentido, nas ruas e becos nocturnos, só teve consequências na construção de mercadorias irrevogáveis: os livros e as ideias que eles trazem. O teor do que são feitos. A forma. A cadência e a recusa da «inovação». Até porque, sabemo-lo, quando o patrão exige inovação, o escravo honesto é o primeiro a proclamá-la. Por isso também, Tó, o teu livro tem um valor imenso. Por isso a nossa deriva teve consequências até no envelhecimento de cada um. Mas, pelo menos, fomos coerentes.
Quinta impressão – a sociedade do cansaço ou o tardomodernismo
No ano passado, editámos, no Porto, um livro apresentado por Rosa Maria Martelo e a autora de Calma é apenas um pouco tarde - A Resistência na Poesia portuguesa contemporânea, de Maria Leonor C. Figueiredo. Falavam no leitmotiv da poesia e da literatura tardomoderna, isto é, pós-pós-modernista e, recusando todo o aspecto político e partidário da resistência «poética e literária» que pouco, ou mesmo nada, terá a ver com isso; baseavam-se num autor até aí desconhecido para mim. Era Byung-Chul Han que publicou A Sociedade do cansaço. Era, segundo essas autoras um dos principais campos de intervenção da poesia e literatura actuais. Vale a pena citá-lo um pouco porque o ritmo ritualizado do livro do Tó (e também o meu, o nosso, cansaço, ou o actual e colectivo burnout) vai nesse preciso sentido. Diz Han: «a sociedade disciplinar, tal como Foucault a concebe, formada por hospitais, manicómios, prisões, quartéis e fábricas, [e como contra elas nos batemos nos anos 80, digo eu!] já não corresponde à sociedade dos nossos dias. Há muito tempo que ela foi substituída por uma sociedade completamente distinta de ginásios, torres de escritórios, bancos, aeroportos, centros comerciais e laboratórios genéticos. A sociedade do século XXI já não é uma sociedade disciplinar, mas, sim, uma sociedade de produção. (…) A sociedade disciplinar é uma sociedade de negatividade. Ela é determinada pela negatividade da proibição. O verbo negativo que a domina é o “não poder”. Ou seja, até a palavra de ordem “é proibido proibir” foi absorvida pelo sistema (…) A vida cultural da humanidade, na qual se inclui também a actividade filosófica, só é possível e só se desenvolve quando existe uma atenção profunda e contemplativa. A atenção profunda tem vindo a ser cada vez mais suplantada por um tipo de atenção completamente diferente – a hiperatenção, dispersa e distraída caracterizada pela mudança brusca do foco da questão, pela alternância constante das tarefas, fontes de informação e processos. A tolerância ao tédio é bastante limitada e acaba por não deixar muito espaço livre àquele tédio profundo propiciador do processo criativo. É precisamente este tédio profundo [um outro tipo de tédio que abominávamos nos anos 70 e 80 na esteira política dos anos sessenta, mas que hoje tem este sentido que lhe dá Han] que Walter Benjamin descreve “a ave do sonho que choca o ovo da experiência”». Por isso o animal laborans da sociedade tardomoderna é hiperactivo e hiperneurótico, nervoso, odeia o silêncio e vem em sentido completamente contrário às personagens que dão vida ao livro do Tó Martins que segundo a minha opinião reivindicam a vida humana total. Talvez Nietzche, um filósofo a que demos sempre muita atenção nas nossas derivas filosóficas dos anos 80, tenha resumido tudo isto neste aforismo: «Ao homem activo falta, regra geral, a actividade superior, o que faz dele, sob este ponto de vista, um homem preguiçoso. Tal como a pedra, o homem activo rebola ao sabor da estupidez da mecânica». Para que não haja dúvidas, escreveu-o ele no Humano, Demasiado Humano.
Esta foi sem dúvida a grande aventura do pensamento que um grupo de jovens dos anos 80 e inícios dos anos 90 e dos quais quase nenhum, hoje, se encontra radicado em Coimbra, realizou. Tentámos o impossível. Lutar contra a opacidade que então já se elevava na sociedade circundante e que varreu o mundo, tal como é definida, hoje por Steiner, pelo facto de hoje sermos incapazes de saber, ou querer saber, o que o outro ser humano está a pensar. Não prestamos atenção suficiente ao outro. Ora, o Tó Martins, teve a coragem de fazer-se ouvir, pensando Outro, onde as tonalidades da mentira são inúmeras, na tal sociedade invertida, onde o verdadeiro é somente o momento do falso.

Sexta e última impressão – Volliamo Tutti, foi o grito de guerra dos operários e estudantes de Bolonha que queriam simplesmente tudo, tal como os comunnards franceses de 1871, ou os estudantes de 68 e os mais radicais de 69 em Coimbra, cidade que, vejam, foi referida, num posfácio, por Vaneigem no seu livro icónico A Arte de Viver da Geração Nova. Nunca foi compreendido em toda a sua extensão esta reivindicação tão simples. Foi-o por nós. Disse ele: «Aqueles que falam de revolução e de luta de classes sem se referirem explicitamente à vida quotidiana, sem compreenderem o que há de subversivo no amor e de positivo na recusa de coacções, esses têm na boca um cadáver»; mesmo dentro da experiência editorial que partilhámos os dois, juntamente com outros companheiros, isto nunca foi compreendido nos anos 80 e nos que se seguiram. Tratava-se de ligar um movimento alternativo e libertário à arte e à cultura ou que existe ainda dela. Entre o niilismo terrorista dos anos de chumbo por que passámos nos anos 80, não houve espaço para demonstrar a equivalência e a necessidade das duas reivindicações. Não há verdadeira política sem arte, não há arte sem polis ou na poesis. Fomos, então, à nossa vida. Nenhum de nós ficou cá. Acompanhados pelos anjos da impotência de Klee, o seu Angelus Novus, ou dos de Walter Benjamim, ou os anjos do desespero de Heiner Muller, talvez ainda com os de Wim Wenders, que hesitam entre a queda e o voo. Porque já não acreditam nas suas próprias asas ou vivem aterrorizados, perante o mal de Arendt, construído por funcionários subalternos ou pelos burocratas de Kafka. A guerra, essa, instalou-se no nosso campo. O livro do Tó é o verdadeiro que se arremete contra o falso. Tem asas. Oxalá voe. «Restam, portanto, os irrecuperáveis, aqueles que recusam os personagens, aqueles que elaboram a teoria e a prática dessa recusa». É nessa inadaptação à sociedade do espectáculo, ou tardomoderna, que virá a poesia do vivido, uma reinvenção da vida. O que foi realizado em Cidades Materiais ou nos que o Tó ajudou a editar pela sua vida fora e em diferentes situações. Aqui, e com ele, cantam os «anjos da pureza» de Mallarmé. É assim que eu o vejo. Ao teu livro, Tó. Ele voa. E como dizes, em completa consonância, julgo eu, do que aqui disse e que partilharei convosco:
«Quero acreditar que no choque dos contrários, nessa violência que habita a ambivalência, é possível um movimento de descanso do olhar, de tranquilo desejo, de pasmo e de alucinação sublime, de descoberta, de risco. Talvez assim a vida sobreviva, talvez…»


António Luís Catarino, Porto/Coimbra, Julho de 2016